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Full text of "A morte da aguia : poema heroico em VII cantos"

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A  Morte  da  Aguía 


Em  Preparação: 

A  minha  Terra  (poesias  líricas). 


Jai/ae  Cortesão 


f\  Morte  da  Águia 


Poema  heróico  em  \^li  cantos 


1910 

Livraria  Editora 

GUIMARÃES  «&  C.^ 

68,  Rua  de  S.  Roque,  70 

Lisboa 


CANTO  I 


O  DESPERTAR  DE  UM  DEUS 


o  despertar  de  um  deus 


Nasceu  a  Águia  na  Montanha. 

O  ninho  foi  hórrida  brenha 

Numa  caverna  exposta  aos  ventos, 

—  Hirta  e  petrificada  boca, 

Por  onde  uma  Sibila  de  voz  rouca 

Prediz  ao  Mundo  os  novos  sofrimentos.  - 

Átrio  do  Ceu,  assenta  numa  rocha, 
Que  arranca  da  Montanha  e  desabrocha 
Como  uma  flor  em  plena  imensidade  ; 
Do  pétreo  cálix,  das  entranhas  virjens, 
Sái  um  perfume  tal,  que  dá  vertijens, 
Que  a  flor  tem  por  aroma  a  Tempestade. 


12  O   DESPERTAR   DE   UM  DEUS 

Nicho  de  catedral,  abandonado, 

E  penhascoso  baldaquino  armado, 

Sem  que  um  pobre  santinho  ali  se  acoite; 

Ou  donde  foje  algum  lijeiro  santo 

Tentado  pelo  Céu,  e  vôa  tanto 

Que  só  recolhe  lá  por  alta  noite. 

Átrio  do  Ceu,  pra  que  entre  e  saia  o  Dia 

E'  lá  que  a  Aurora  se  atavia 

Para  mostrar  ao  Mundo  o  claro  rosto  ; 

Átrio  do  Azul  que  a  Madrugada  escolhe, 

Também  ali  se  acolhe 

O  derradeiro  raio  do  Sol-posto. 

De  tam  alto,  sublime,  etéreo  assento, 

Com  que  arrebatamento 

O  olhar  agudo  se  estendia  ao  largo : 

Píncaros,  vales,  azulados,  montes.  .  . 

Líquidos  horizontes .  .  . 

O  volutuoso  abraço  do  Mar-largo  ...» 

Mal  a  Águia  nasceu. 

Fitou  logo  a  Montanha,  o  Mar  e  o  Ceu  : 

Primeiro  olhar,  e  de  tal  modo  intenso 


A  Morte  da  Aguia  15 


Que  nunca  o  seu  profundo  coração 

Sentiu  Desejo,  Dor,  ou  Comoção, 

Que  envergonhasse  aquele  espaço  imenso. 

Olhar  d'um  deus  que  acorda 

De  triste  e  humano  sonho,  e  que  recorda 

A  sua  gloriosa,  eterna  Vida, 

E  ao  ver  sua  divina  Creação, 

Dentro  de  si  reúne  a  comoção 

De  toda  a  imensidade  comovida. 

Abismos,  onde  as  cataratas  soam. 
Vales  e  montes.  Mar,  nuvens  que  voam, 
Ninguém  vosso  desejo  imenso  acalma  ; 
Nenhum  de  vós,  erguendo  a  mesma  prece, 
A  si  mesmo  ou  aos  outros  se  conhece  : 
Só  os  deuses  entendem  a  voss'alma. 

Águia  divina,  que  entendeste  o  Mundo, 
Tu  viste  como  o  Céu  era  profundo 
E  o  Mar  inesgotável, 
Que  tudo  é  Vida  e  toda  a  vida  é  Luta, 
E,  que  arrancando  a  cada  coisa  viva 
Sua  virtude  e  espírito  indomável. 


14  O  DESPERTAR  DE  UM  DEUS 


Em  ti  reuniste  as  forças  mais  extranhas, 
Tal  a  firmeza  duma  rocha  bruta, 
A  vontade  tenaz  d'arvore  altiva, 
O  arranco  vitorioso  das  montanhas 
E  o  ímpeto  dum  rio  ou  dum  vulcão. 

Ah  !  quando  o  abismo  mais  era  insondável. 

Mais  teu  Desejo  tinha  de  aflição, 

Te  erguia  o  vôo,  te  crispava  a  garra 

Num  supremo  transporte ; 

Como  um  navio  que  ao  soltar  da  amarra 

Toma  o  rumo  da  Morte, 

Vira  a  robusta  proa  á  imensidade 

E  larga  toda  a  vela  á  Tempestade, 

A  quantos  ventos  ha  do  Sul  ao  Norte, 

Para  que  ao  menos  roto,  espedaçado, 

Algum  destroço,  inda  animado 

Daquele  anceio  etéreo, 

Vá  sobre  as  aguas  a  boiar, 

E  emfim  possa  aportar 

A^s  praias  do  Oceano  do  Mistério  ! 


CANTO  II 


HINO  Á  MONTANHA 


..yc   •^f^ei^tO'   ^íí^^2^^/^^a 


Hino  á  Montanha 


Ai !  a  Montanha  !  que  sublime  esforça 
Lhe  agita  o  formidável  dorso 
E  faz  que  altíssima  se  eleve, 
Rasgando  a  toda  altura  o  horizonte, 
Té  que  lhe  cinja  a  majestosa  fronte 
Um  diadema  puríssimo  de  neve  ! 

As  cúpulas,  as  grimpas  arrojadas. 
Flechas  eguais  ás  línguas  das  espadas, 
Agulhas,  obeliscos,  coruchéus 
Vestiram-se  de  nítidas  alvuras 
E  sequiosos  das  alturas 
Foram  beijar  os  Céus. 


•20  Hino  á  Montanh.^ 


Montanha,  arripiada  fera  hirsuta, 
Inda  raivosa  duma  antiga  luta, 
Tu  sufocaste^  derradeiro  grito, 
E  tu  petrificaste,  jesto  horrendo 
Da  Terra  toda  em  fogo  percorrendo 
As  frijidas  stepas  do  Infinito. 

Passaram  anos,  séculos,  edades, 
E  sempre  chuvas,  neves,  tempestades, 
Granizos,  avalanches,  cataclismos 
Foram  aqui  rasgando,  abrindo  brechas, 
Ali  erguendo  pontes  e  altas  flechas 
E  aqui,  ali,  além  cavando  abismos. 

Assim  a  Terra,  a  Agoa,  o  Fogo,  os  Ventos, 
Todos  os  bravoè  elementos^ 
Com  o  cinzel  e  o  estro  da  loucura 
Deram-lhe  o  rasgo,  a  inspiração  suprema, 
O  ritmo  d'um  bárbaro  poema 
Ou  duma  desvairada  arquitetura. 

Ah  ! . . .  quem  de  perto  visse  e  penetrasse 

O  atónito  fulgor  da  pétrea  face, 

Que  hórrida  lava  como  o  sangue  tinje. . .  ?  ! 


A  Morte  da  Águia  21 


Quem  ouvisse  pulsar-lhe  o  coração, 
Soubesse  que  sublime  comoção 
Perturba  o  seio  da  calada  esf  inje . . .  ?  ! 

Eu  quando  poiso  o  pé  sobre  a  Montanha 
E  avisto  o  Céu  e  o  Mar  de  erguida  penha, 
De  súbito  estremeço, 
Fico  mudo  de  espanto,  empalideço 
E  logo  grito,  canto,  choro  e  rio, 
Tremo  como  se  um  vento  me  abalasse, 
Ou  a  Montanha  á  volta  me  enviasse 
O  seu  calafriante  desvario. 

Ás  vezes  no  caótico  tumulto 

Dos  acidentes  da  Montanha 

Algum  arranca  o  Vulto, 

Projeta  a  sombra  extranha 

Na  fauce  do  Infinito.  Em  torno  a  noite  escura ; 

Só  o  relâmpago  fulgura 

No  torvo  Céu,  onde  não  brilham  astros; 

E  um  navio  —fantasma,  a  todo  o  pano. 

Varrido  pelo  vento  e  pelo  Oceano, 

Por  velas  nuvens,  píncaros  por  mastros. 

Corre  pelo  Mar-fóra,  halucinado. 


^  Hino  á  Montanha 


E  naufraga  por  fim  desarvorado 

Nalgum  abismo  ignoto  ! 

Ou  formidável  catedral 

Baqueia,  treme,  abate-se  afinal 

Nas  torvas  convulsões  dum  Terramoto  ! 

Toda  a  Montanha  oscila  de  furor 

Quando,  como  colérico  fulgor 

Da  pupila  do  Céu, 

Algum  relâmpago  ilumina  o  espaço, 

Que  o  raio  atravessa-lhe  o  espinhaço 

Como  um  agudo  arpéu, 

E  nessa  luz  lívida  e  fria 

O  leviaían  enorme  ondula, 

E  numa  hórrida  agonia 

Tem  calafrios  na  medula! 

Visionam-se  batalhas 
Sobre  ciclópicas  muralhas 
Entre  hipogrifos  e  dragões; 
Ou  nos  inóspitos  Calvários 
Rochedos  —  Nazarenos  solitários, 
Agonisam  em  rudes  contorsões. 


A  Morte  da  Águia  23 


Ha  rochas  ajoelhadas, 

Religiosamente  concentradas 

Á  beira  das  encostas ; 

Rochedos  ojivais 

Imploram  de  mãos  postas ; 

Punjentissimos  ais, 

Dilacerados  gritos 

Sam  os  agudos  coruchéus ; 

E  os  abismos  voltados  para  os  Céus 

Estam  erguendo  a  alma  aos  infinitos. 

Os  áridos  granitos, 

Rudes  fragas,  plutónicas,  curvadas 

No  seu  fervor  de  humildes  consciências, 

Com  seus  cilícios  d'urzes  requeimadas, 

Estam  cumprindo  duras  penitencias. 

Sonhos  de  Deus,  esboços  do  Sublime, 
Formas  da  primitiva  creação  ! 
Continuamente  vos  oprime 
A  dôr  da  imperfeição  ! 

Montanha  !  é  tam  profunda  a  tua  dôr, 
Tam  grande  o  teu  impulso  redentor, 
O  anseio  de  beleza  em  que  te  abrazas. 


24  Hino  á  Montanha 


Que  cada  pesadíssimo  rochedo, 
Inabalável^  taciturno  e  quedo 
Tenta  bater  as  asas  ! 

E  tudo  se  debate  e  tumultua 

Com  um  tremendo  esforço  sobreumano 

Nessa  petrificada  Babilónia: 

És  a  carne  sangrenta,  rocha  núa, 

O  teu  sossego  — um  revolver  insano, 

O  teu  silencio  —  uma  contínua  insónia. 

Resto  do  Caos  primitivo^ 

Encapelado  Oceano 

De  tudo  o  que  ha  trajicamente  vivo  ! 

Ali  —  talvez  a  forja  de  Vulcano 

Onde  é  batido  o  raio  fulgurante; 

Ali  —  talvez  o  pórtico  do  Inferno, 

Onde  o  génio  de  Dante 

Foi  esculpir  o  desengano  eterno. 

Ali  se  desagregam  duras  fráguas. 
Roídas  pelas  águas 
De  persistente  força  corrosiva ; 
Mas  neves,  águas^  rochas  das  alturas 


A  Morte  da  Águia  25 


Jamais  olvidaram  pelas  planuras 
A  ânsia  primitiva. 

A  rocha  que  se  funde  e  se  derrama 
Em  terra,  sedimento,  escura  lama 
Vai  da  raiz  á  flor  desabrochar, 
E  as  águas  que  desceram  das  pendentes 
Foram  quedas,  ribeiros  e  torrentes. 
Por  fim  ondas  altissimas  do  Mar  ! 

Ali,  emquanto  não  assola  a  Terra, 

Nas  gargantas  da  serra 

Ensaia  a  Tempestade  os  grandes  coros  ; 

E  sobre  os  píncaros  agrestes, 

Vagabundos  celestes, 

Vam  descansar  emfim  os  meteoros ! 

Ali  —  tudo  o  que  é  grande,  forte,  altivo : 

A  Águia  poisa,  a  nuvem  pára, 

O  ar  é  puro  e  vivo 

O  Céu  é  mais  profundo  e  a  luz  mais  clara ! 

Cariátide  do  Céu,  Atlas  gigante, 
Alto  e  rude  colosso  de  granito  ! 


26  Hino  á  Montanha 


Que  heroismos,  que  assombros 

Levantam  a  nossa  alma  delirante, 

Ao  vêr  que  degladiaa  o  Infinito 

E  vem  o  Céu  poisar-te  sobre  os  hombros ! 

Ás  vezes  ilumina-se  o  teu  dorso 
No  gesto  transcendente  da  verdade, 
Gesto  que  ensina  a  religião  do  esforço 
E  aponta  para  um  Céu  de  Liberdade  ! 

Heróis  !  unji  as  almas  de  beleza 
E  erguei  dali  na  luz  e  na  grandeza 
Destroços  feitos  por  um  deus  cruel : 
Os  broqueis  dos  ciclopes  revoltados, 
Armas  partidas  d  anjos  despenhados 
E  as  ruinas  da  torre  de  Babel  ! 


CANTO  III 


A  ÁRVORE  TRÂJICA 


^^/c  ^^^iíre^^^ui  c/e  ^^í^t 


^i^et^^ci  ae  ^^,^ciá^aci^ 


A  Árvore  Trájica 


No  píncaro  mais  alto  da  Montanha 
A  Árvore  crescera  de  tal  sorte, 
Como  nunca  se  viu  serra  tamanha, 
Nem  crescer  outra  Árvore  mais  forte. 

Ali,  dessa  Montanha  erguida  a  prumo, 
Onde  o  frescor  da  vida  era  tam  escasso, 
A  Tempestade  decedia  o  rumo 
E  as  águias  abalavam  pelo  espaço. 


A  Árvore  Trájica 


Lonje  das  mais  e  livre  do  escarcéu, 
Que  uma  floresta  murmura  produz, 
A  Árvore  embebia-se  no  Céu, 
Afogava-se  toda  em  plena  luz. 

Isolada  no  agreste  e  duro  serro, 
Tendo  por  cima  o  Céu,  por  baixo  o  abismo, 
Era  como  os  profetas  no  desterro 
Abrasados  de  fé  e  misticismo. 

Tinha  o  tronco  torcido  como  um  dorso, 
Cada  forte  raiz,  um  duro  flanco  ; 
Toda  vibrante  dum  heróico  esforço. 
Toda  ajitada  dum  supremo  arranco. 

Cada  torcido  ramo,  longo  braço, 
Erguia-se  convulso  para  o  alto. 
Como  quem  tenta  erguer-se  pelo  espaço 
Ou  tomar  um  reduto  pelo  assalto. 

Assim,  desde  a  raiz  ao  fino  tope. 
Brandido  como  a  lín§ua  duma  espada, 
Havia  o  salto  heróico  dum  ciclope. 
Que  vae  tomar  o  Céu  pela  escalada. 


A  Morte  da  Águia  33 


Nos  ramos  tinha  roscas  reluzentes, 
Altas  arrancas  a  silvar  injúrias  ; 
Lembrava  a  copa,  a  trança  de  serpentes 
—  A  cabeleira  trájica  das  Fúrias — . 

Folhas  bebendo  a  luz  a  grandes  sorvos 
Pela  taça  do  Céu  a  trasbordar, 
Tam  negras,  tam  inquietas,  como  os  corvos, 
Quando  pairam  com  fome  sobre  o  ar. 

Via-se  o  Sol  a  dar-lhe  repelões, 
A  Terra  a  conserva-la  inda  mais  presa, 
Penetrava  d'angustia  os  corações. 
Chegava  a  ser  sinistra  de  grandeza  ; 

Assim,  alguém  que  foi  sepulto  em  vida, 

A  meio  corpo  fora,  se  corcova 

E  põe  a  força  toda  na  saída. 

Louco  por  se  arrancar  á  horrível  cova  ! 

De  noite  projectava  a  sombra  escura 
Em  plena  fauce  lôbrega  do  Empíreo ; 
E  viam-se-lhe  gestos  de  loucura, 
Ouviam-se-lhe  falas  de  delírio. 


54  A  Árvore  Trájica 


E,  quando  nessa  abobada  pelájica 
Galopavam  os  ventos  infinitos, 
Aquela  desvairada  árvore  trájica 
Alucinada,  alegre,  dava  gritos. 

Se,  na  celeste,  na  profunda  esfera, 
Erguendo  os  braços  hirtos  como  os  mastros, 
Caía  a  noite,  vinha  a  Primavera, 
Vestindo-a  toda  com  aá  flores  dos  astros. 

E  toucada  de  sois  ela  ajoelhava, 
Sacerdote  do  Azul,  árabe  crente, 
Naquela  torre  audaz,  feita  de  lava. 
Abrindo  os  braços  para  a  luz  do  Oriente. 


Falas  ardentes  dos  heróis  de  Homero 
E  tu,  oh  !  alma  trájica  de  Esquilo, 
Para  que  possa  interroga-la,  quero 
O  vosso  poderoso  e  claro  estilo . .  .  ! 


A  Morte  da  Águia  55 


«Hércules  vejetal,  em  que  façanha 
E  temerária  empresa  te  empenhaste, 
Que  ao  píncaro  mais  alto  da  Montanha 
O  teu  robusto  corpo  abalançaste. . .  ?  !» 

«Que  hidra,  que  monstro,  ou  Onfaie  te  eleva, 

Te  obriga  a  suportar  todo  o  pavor 

E  desolada  solidão  da  treva, 

Que  raiva,  que  desejo,  ou  que  furor ...?!» 

«Ou  seja  que,  até  nós,  venham  contigo 
Novas  tormentas,  novo  Adamastor . . .  ?  ! 
E  que  em  silencio  sofras  o  castigo 

De  rebeldia  e  desvairado  amor  ...?!» 

«Suspendei  por  momento  a  fúria  louca 
(Se  me  podeis  ouvir  e  se  falais) 
Tornai  mais  branda  a  endurecida  boca. 
Abri  os  rudes  lábios  vejetais.» 

«E  olhai,  que  tendo  forma  e  corpo  vário, 
Podemos  ser  irmãos  pelo  tormento  : 
Eu,  como  vós,  sou  duro  e  solitário 
Arrosto  o  frio,  o  raio,  a  noite  e  o  vento.» 


36  A  Árvore  Trájica 


Então  (ainda  tremo  de  conta-lo) 
Torceu-se  mais  na  trájica  atitude, 
Correu-a  toda  um  temeroso  abalo, 
Mais  alto  ergueu  ainda  o  corpo  rude, 

E,  abrindo  os  braços  ríjidos  em  cruz^ 
Falou  ;  e  a  sua  clara  voz  dizia  : 

«Eu  sou  a  crente  mística  da  Luz 
Eternamente  anciosa  pelo  Dia.» 

«Nasci  do  mais  informe  e  escuro  lodo  ; 
Mas,  ponha  o  Sol  em  mim  beijos  felizes, 
Estremece-me  e  vibra  o  corpo  todo 
Até  ao  mais  profundo  das  raízes.» 

«Posto  que  viva  na  mais  alta  serra, 
É  certo  que  nasci  do  lodo  vil ; 
É  sempre  cela  estreita  —  a  larga  Terra, 
Dura  grilheta  —  a  rocha  do  alcantil.» 


A  Morte  da  Águia  37 


«Não  ha  robusto  tronco  por  altivo 
Que  a  cúspide  mais  livre  se  arrojasse, 
Mas  quanto  mais  a  Vida  intensa  vivo, 
Tanto  deparo  a  Morte  face  a  face.» 

«Oh  !  que  aflição,  que  horror,  ficar  sósinho, 
Todo  afogado  em  treva  pela  noite, 
Emquanto  o  vento  passa  em  redemoinho, 
Despedaçando  em  mim  o  aéreo  açoite  .  . .  !) 

«Os  meus  irmãos  do  bosque,  se  anoitece, 
Buscam-se  com  a  longa  ramaria, 
Povo  que  pelo  tato  se  conhece, 
E  fazem  uns  aos  outros  companhia.» 

«  Mas  eu,  se  a  noite  cái,  tremo  de  medo ; 
E  como  só  em  pedras  duras  toco. 
Começo  a  empedernir,  volto  a  rochedo, 
Fíco-me  inerte  e  solitário  bloco.» 

«Só  quando  rompe  o  Sol  de  madrugada 
De  novo  corre  em  mim  a  seiva  quente 
E  o  tronco,  feito  pedra  rejelada, 
Resurje  carnação  adolescente.» 


58  A  Árvore  Trájica 


«E  eu  que  do  claro  Sol  e  da  Luz  vivo, 
Alargo  a  imensa  copa  em  plena  graça, 
Sôfrego  bebo  a  luz,  alegre  e  altivo, 
Sou  único  a  beber  na  minha  taça.» 

«Sim,  escolhi  o  píncaro  mais  alto, 
Enraízei-me,  quieta  e  recolhida ; 
E  quanto  mais  me  afundo,  mais  me  exalto, 
Mais  em  mim  bate  o  coração  da  Vida.» 

«Aqui  trazem  mais  ímpeto  as  rajadas, 
Mais  pode  o  raio  rápido  ferir-me  ; 
Não  vem  cantar-me  as  aves  nas  ramadas 
E  as  trepadeiras  tremem  de  florir- me;» 

«Sou  por  duros  trabalhos  combatida 
Desta  Montanha  na  elevada  aresta, 
Mas  vale  mais  uma  hora  desta  Vida 
Que  toda  a  vossa  vida  da  Floresta.» 

«Que  brilhe  o  raio  e  sopre  o  vento  forte . , 
Mais  o  meu  livre  coração  se  expande ; 
Quanto  mais  perto  da  fecunda  Morte, 
Tanto  mais  sinto  como  a  Vida  é  grande.» 


A  Morte  da  Águia  39 


«Mais  luz  ! ...  que  o  meu  espírito  veloz 
Vôo  mais  livre  e  mais  sublime  ensaia ; 
Sou  como  um  rio  que  não  tenha  foz, 
Como  um  Oceano  que  não  tenha  praia.» 

«Mais  luz  ! ...  Eu  sonho,  eu  sinto  para  além 
Uma  outra  Vida  superior  á  minha  : 
Formas,  espíritos,  visões  . . .?  Alguém 
Que  num  País  mais  lúcido  caminha. 

«Ha  outra,  inda  mais  Vida.  Eu  bem  na  sinto, 
E  tam  real  que  quasi  me  incomoda, 
Estendo  as  mãos,  pergunto  por  instinto: 
«Quem  fala,  quem  palpita  á  minha  roda?» 

«Desejo  é  já  princípio  d'outra  Vida, 
O  Tempo  —  uma  cegueira  da  Matéria  . .  . 
Vou  ser  a  Luz,  a  Alma  comovida, 
Espírito,  Princípio,  Essência  etérea ! . . .» 

«Ardo,  deliro,  anceio  ! . . .  Luz  emfim  ! . . . 
Sam  labaredas  os  meus  ramos  nus  ; 
Ha  fogo  a  crepitar  dentro  de  mim. . . 
Pairo,  alumio  e  vejo, . . .  Sou  a  Luz  ! . . . » 


40  A  Árvore  Trájica 


Disse.  Vi  ondular-lhe  a  copa  a  prumo ; 
Figurou  atirar-se  a  um  precipício  ; 
Súbito  ardeu,  foi  chama,  depois  fumo, 
A  névoa  espiritual  dum  sacrifício. 

Eu  fiquei  só  e  mudo  sobre  o  cume, 
Que  erguia  a  fronte  solitária  e  rasa, 
E,  como  a  pedra  d'ara,  onde  liouve  lume^ 
Senti  toda  a  Montanha  ainda  em  brasa. 


CANTO  IV 


A  VIDA  HERÓICA 


A  Vida  heróica 


A  Águia  —  o  génio  das  montanhas  — 
Ardia  numa  febre  de  heroísmos ; 
Brotára-lhe  das  férvidas  entranhas, 
Era  o  grito  de  angústia  dos  abismos. 

Ia  poisar  nas  cristas  alterosas 

Com  atitudes  magestosas 

Duma  estátua  em  soberbos  pedestais ; 

E  quando  as  azas  negras  se  alargavam 

As  remíjes  agudas  faiscavam, 

Para  fender  o  ar  como  punhais. 


44  A  Vida  heróica 


Que  heróica  aparição^ 

Quando  surgia  vigorosa,  ardente, 

Na  cúspide  do  monte  ! 

Despedia  de  si  o  súbito  clarão 

Dos  astros  no  Oriente, 

Quando  rasgam  as  brumas  do  horizonte ; 

Ave  de  preza. 

Que  fila  e  que  arrebata 

Com  verdadeiro  amor  ao  perigo ; 

Duma  estirpe  real  que  adora  a  luta  aceza 

Tem  júbilos  cruéis  emquanto  mata. 

Canta  sobre  o  cadáver  do  inimigo. 

Palpita-lhe  no  rude  e  altivo  porte, 
Todo  talhado  em  formas  duras, 
A  enerjia  suprema  duma  raça; 
Brilham-lhe  as  penas  ríjidas  e  escuras, 
Envolvendo-lhe  o  peito  alto  e  forte 
Numa  ardente  couraça. 

Salta-lhe  o  coração  no  vasto  peito, 

Cárcere  estreito 

Pra  tão  indómito  pulsar, 


A  Morte  da  Águia  45 


Indo  de  encontro  ao  ríjido  broquel, 
Como  numa  caverna  o  irado  tropel 
Dos  vagalhões  do  Mar. 

Se  via  as  outras  Águias  na  amplidão, 
Sulcando  todo  o  Céu  num  vôo  forte, 
Cheio  de  majestade  e  de  harmonia, 
Pulava-lhe  de  fúria  o  coração, 
E  atirava  num  súbito  transporte 
Arrebatados  gritos  de  alegria. 

Um  desejo  sem  fim,  um  contínuo  transporte 
Lhe  dilatava  o  coração; 
Na  sua  veemente  exaltação 
Desafiava  com  despreso  a  Morte. 

Vivia  a  Vida  trájica  e  profunda. 

Heróica,  aventureira,  vagabunda, 

Rasgando  sempre  espaços  novos, 

E  ignorando  as  fronteiras 

Que  dividem  os  povos, 

Percorreu  as  lonjínquas  cordilheiras. 

Atravessou  o  Mar  e  os  Céus  distantes, 


46  A  Vida  heróica 


Lançando  em  cada  serra 
Os  seus  gritos  de  guerra 
Bárbaros,  percucientes,  terebrantes. 


Carne  que  a  chama  fúljida  consome, 
Quando  sentia  a  fome. 
Partia  das  altíssimas  arestas, 
Abria  as  asas  sobre  a  rocha  escassa 
E,  corsário  do  Azul,  partia  á  caça 
Dos  animais  bravios  das  florestas. 

Se  via  a  presa,  os  seus  instintos 
Erguiam-se  coléricos,  famintos, 
E  despedia  lume  pelo  olhar ; 
E  com  os  olhos  fitos  sobre  a  presa 
A  devora-la  co  a  pupila  acesa 
Descia  de  vagar. 

Mas  ei-la  que  se  arroja  de  repente, 

Vertijinosamente, 

Ranjendo  o  bico  ponteagudo; 


A  Morte  da  Águia  47 


E  cai  CO  as  asas  encolhidas 

E  as  garras  estendidas, 

Fendendo,  abrindo  o  ar  num  silvo  agudo. 

Rápida  flecha  em  direitura  á  meta, 
Ei-la  que  abala,  corre  e  se  arremessa, 
Desaba  sobre  a  presa  e  já  lhe  espeta, 
Lhe  finca  e  crava  as  garras  na  cabeça. 

Depois,  tinta  de  sangue  e  olhos  em  brasa^ 
Erguia  a  presa,  desfraldando  a  asa, 
Ia  poisa-la  sobre  as  altas  penhas ; 
E,  ébria  duma  divina  crueldade, 
Atirava  o  seu  canto  á  Imensidade 
Do  cimo  das  montanhas. 


CANTO  V 


O  CANTO  DAS  ÁGUIAS 


..yc  ^y&^^^'^^y^'a    L^o^yléci^  c/ (yÁ 


^f-eyi4^^ 


o  Canto  das  Águias 


«A  vida  dos  heróis 
Faz-nos  luzir  os  olhos  coruscantes 
Com  a  firmêsa  rude  dos  diamantes 
E  o  brilho  ardente  e  fúljido  dos  sóis.)? 

«Nós  fitamos  o  Sol  sem  que  os  seus  raios 

Ceguem,  fulminem  mais  que  o  nosso  olhar 

Nunca  temos  vertijens,  nem  desmaios, 

Abrindo  a  nossa  asa  resoluta 

Pelas  rejiões  altíssimas  do  ar, 

Ou  quando  o  sangue  corre  em  plena  luta ! 


54  O  Canto  das  Águias 


«Astros  ardendo  no  zenith, 

Tal  como  o  abismo,  o  Céu,  o  livre  espaço, 

Nossos  desejos  nunca  tem  limite ; 

Desprezamos  a  órbita  traçada : 

Aí  —  o  ar  mais  livre  é-nos  escasso 

E  a  trégua  por  mais  doce  é-nos  pesada ! 

E  a  cada  passo 

Desejos  mais  profundos 

Erguem-se  em  nós  gritantes  d"ansiedade, 

Consumindo  na  chama  novos  mundos, 

Indo  até  onde  vai  a  Tempestade !» 


«Que  tumultuoso  e  arrebatado  anseio  ! 
Em  nós  toda  a  vontade  satisfeita 
Tem  um  sabor  amargo  .  . . 
Trazemos  a  rugir  dentro  do  seio 
Duma  contínua  fúria  insatisfeita 
O  coração  raivoso  do  Mar  largo !» 


«Se  a  fome  e  a  sede  toda  se  levanta, 
A  onda  dos  desejos  nos  inunda 
Em  haustos  tam  aflitos, 


A  Morte  da  Águia  55 


Que  vem  do  coração  para  a  garganta, 

E  é  tam  profunda 

Que  nos  sufoca  os  gritos  !» 

«É  tanta,  é  tanta,  que  não  cabe  em  nós , 
E  dentro  do  mar  íntimo,  disperso 
Cada  onda  emotiva  ganha  Voz 
E  anseia  a  Vida  plena  do  Universo.» 


«Para  alem,  para  além!...  Ó  cumes  solitários, 
Somos  as  vossas  sentinelas, 
É  este  o  nosso  toque  de  clarim; 
Andamos  pelo  Azul  como  os  corsários : 
Abrir  as  asas  é  soltar  as  velas 
Pelo  Mar-fóra,  pelo  Céu  sem  fim.» 

«Para  além,  para  alem,  fúria  do  imenso, 

Fogo  que  nos  abrasas .  .  .  ! 

Raiam  auroras  de  desejo  intenso 

Vibram  heróicas  tubas  de  alegria 

Quando  abrimos  as  asas 

Na  luz  do  Sol,  ao  ar  das  ventania !» 


56  O  Canto  das  Águias 


«A  guerra  a  guerra,  a  luta,  a  vida  forte; 
Só  ama  a  Vida  quem  despreza  a  Morte; 
Não  ha  desastre  que  o  valor  nos  quebre; 
Em  frente  do  mais  válido  inimigo 
Ou  quando  mais  nos  ameaça  o  perigo 
Sobe  até  ao  delírio  a  nossa  febre  !» 

«Soltai  os  halalis,  clarins  da  glória; 
Voemos  todas  nas  regiões  empíreas 
Á  busca  do  triunfo  e  da  vitória. 
Como  a  coorte  alada  das  Walkírias.» 

«Para  alem,  para  alem . . . !  Só  no  mais  alto  cume 

A  nossa  carne,  ébria  de  goso. 

Encontra  a  neve  e  o  frio 

Pra  que  se  apague  mais  o  eterno  lume 

Que  nos  devora  o  coração  sequioso. 

Como  as  searas  no  estio.» 

«Ciclones,  tempestades,  furacões 
Quando  cinjis  no  vosso  largo  açoite 
As  trémulas  florestas  pela  noite, 
E  quando  vam  os  lívidos  clarões 


A  Morte  da  Águia  57 


«Apunhalar  o  coração  da  Treva, 

Logo  a  purpúrea  chama 

Da  vida  ardente  em  nós  se  eleva, 

E  num  incêndio  súbito  ateado 

Valor,  nobreza,  audácia,  intrepidez. 

Tudo  que  ha  de  profundo  em  nós  se  inflama 

E  deixa  o  peito  imenso  dilatado 

De  fúria,  de  loucura  e  de  embriaguez!» 

«Para  alem,  para  alem !, . .  Ó  cumes  d'altos  montes 

Estais  abrindo  os  largos  horizontes 

Aos  nossos  valorosos  corações  ! 

Quando  a  Noite  no  Céu  mais  se  condensa, 

Sobe  de  fúria  a  nossa  vida  intensa 

E  vamos-lhe  arrancar  constelações  !» 


«Quando  a  alma  dos  fracos  desfalece. 
Porque  anda  a  Tempestade  pelo  Empíreo, 


58  O  Canto  das  Águias 


Como  o  corcel  da  Morte  a  toda  a  brida, 
Dá-nos  o  raio  o  fogo  do  delírio, 
E  só  em  nosso  peito  resplandece 
O  facho  ardente  e  trémulo  da  Vida!» 


CANTO  VI 


A  TEMPESTADE 


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A  Tempestade 


Cái  fogo  e  cinza.  O  Céu  é  turvo  e  baço; 
Veste  esse  manto  imenso  um  deus  oculto, 
Que  dança  e  rodopia  sobre  o  espaço  ; 


Agora  num  alíjero  tumulto, 
Logo  em  ondulações  vertijinosas, 
Ora  cinjindo  o  véu  desenha  o  vulto, 


64  A  Tempestade 


Relâmpagos  de  formas  vaporosas, 
Que  brilham  para  logo  se  apagar 
Na  primeira  espiral  das  nebulosas. 


O  célere,  invisível  voltear 

Dos  pés  divinos  tam  de  leve  pisa 

Aflora,  palpa,  acaricia  o  ar, 


Como  uma  pluma  que  levanta  a  briza; 
E,  apezar  disso,  oprime  e  esmaga  o  Mundo, 
Que  um  silêncio  de  chumbo  imobiliza 
Num  meditar  extático  e  profundo. 


O  taciturno  espírito  dos  montes, 

O  indizível  espetro  que  delira 

E  enche  de  seu  delírio  os  horizontes. 


A  Morte  da  Águia  65 


Aos  mais  fundos  abismos  se  retira; 
Agora  pára,  espera,  escuta  a  medo 
E  de  tam  quieto  e  mudo  nem  respira. 


De  lonje,  cada  tácito  arvoredo 

Na  inércia  teatral  das  verdes  comas, 

Lembra  a  mulher  de  Loth,  ígneo  rochedo, 

A  predizer  o  incêndio  das  Sodomas. 


O  bailado  divino  já  vem  perto 
E  o  vulto  velozmente  arrebatado 
Mostra-se  ás  vezes  quasi  a  descoberto ; 


O  Mundo,  como  um  peito  sufocado, 
Em  aflitivas  convulsões  d'horrôr, 
Respira  o  ar  quasi  petrificado. 


66  A  Tempestade 


Mas  pouco  a  pouco  um  gélido  terror 
Esfria  o  Céu,  transtorna  a  face  á  Terra, 
Perturba-lhe  a  feição,  muda-lhe  a  côr. 


E,  como  alguém  que  um  pesadelo  aterra. 
Ou  louco,  ou  visionário,  ou  epilético. 
Assim  árvore,  nuvem,  alta  serra 


Tem  o  semblante  lívido  e  patético. 
Como  se  nas  mais  hórridas  posturas 
Tudo  caísse  em  sono  cataléptico 


Num  hospital  imenso  de  loucuras. 
Emquanto  os  brutos  animais  ferozes. 
Buscam  de  medo  as  negras  espessuras, 


Os  alciões,  gaivotas,  e  albatrozes, 
—  As  aladas  sibilas  da  tormenta, 
Soltam  no  Mar  as  agoirentas  vozes; 


A  Morte  da  Águia  67 


E  numa  extranha  exaltação  violenta, 
Que  as  ergue,  as  arrebata,  as  precipita, 
A  pouco  e  pouco  a  sua  voz  aumenta 


Em  furiosa,  halucinada  grita, 

Tam  cheia  de  visões  e  de  presájios, 

Como  se  fora  a  revoada  aflita 

Dos  derradeiros  gritos  nos  naufrájios. 


Anjos  anunciadores, 
Espíritos  alados  e  videntes, 
Messias,  Visionários,  Percursores, 


Ei-los  que  passam  lívidos,  trementes. 
Pisando  toda  a  Terra  a  largos  passos 
E  deixando  no  pó  rastos  ardentes; 


A  Tempestade 


Ei-los  abrindo  á  frente  outros  espaços, 
Com  a  fUria  do  Mar,  quando  iracundo. 
Rebenta  os  diques  todos  em  pedaços; 


Ei-los  mais  lonje,  além,  ao  largo,  ao  fundo 
Envoltos  já  nas  brumas  do  mistério, 
Erguendo  em  peso,  arrebatando  o  Mundo ; 


E  logo  cheios  dum  esforço  etéreo 
Aceleram-lhe  o  giro  até  lhe  dar 
O  primitivo  resplendor  sidério. 


Ei-los  que  pairam,  voam  a  cantar 
Coa  voz  halucinada  dos  Profetas, 
Tam  forte  que  o  seu  éco  é  secular 


Ou  dando  vida  e  fala  ás  formas  quietas 
E  erguendo-se  ás  visões  originárias 
No  inspirado  delírio  dos  Poetas. 


A  Morte  da  Águia 


Ei-los:  seguem  as  vias  solitárias. .  . 
Já  lhes  desponta  a  luz  do  Dia  eterno 
Sobre  as  divinas  frontes  visionárias. 


'Spalha-se  á  roda  o  seu  clarão  interno 
E  assim  iluminados,  como  Dante 
Vão  a  todos  os  círculos  do  Inferno 
Mostrar  o  Paraíso  inda  distante. 


Ha  quanto,  ha  quanto  tempo  que  os  heróis 
De  noite  afiam  gládios  e  punhais, 
Laminas  d'aço  a  rir,  bélicos  sóis; 


Lobos  famintos,  fúrias,  canibais 

Mais  doidos,  mais  raivosos,  mais  cruéis, 

Ranjem  de  fome  os  dentes,  uivam  mais. 


70  A  Tempestade 


Já,  sobre  o  peito  os  ríjidos  broqueis, 
A  custo  doma  a  hoste  mais  altiva 
O  piafar  inquieto  dos  corcéis. 


Ha  quanto,  um  mar  de  raiva  corrosiva, 
Ruje  e  encastela  as  ululantes  vagas 
E  quasi  atinje  agora  a  maré  viva. 


Dos  peitos  retalhados  por  mil  chagas 
Ás  bocas  más  de  risos  instantâneos 
Afluem  maldições,  gritos  e  pragas. 


Ao  calor  tropical  da  febre,  os  craneos 
Erguem  no  escuro  a  selva  das  visões ; 
Escancaram-se  ocultos  subterrâneos : 


E  os  Quasimodos,  cheios  de  aleijões, 
Desorbitando  as  lúcidas  pupilas, 
Sacodem  a  rebate  os  carrilhões. 


A  Morte  da  Águia  71 


Então  retumba  o  canto  das  Sibilas 
Num  eco  que  de  monte  a  monte  vai : 
«A  pé,  a  pé,  heróis  !  cerrai  as  filas, 


Erguei  os  braços  válidos,  cantai ! 

Abri  vosso  estandarte  ao  vento  forte. 

Agora  avante,  á  frente,  eia,  abalai . . . ! 

Á  Luta,  á  Guerra,  á  Tempestade,  á  Morte . . . !» 


De  súbito,  deitando  fora  o  véu. 
No  auje  do  bailante  rodopio, 
O  dançador  divino  larga  o  Céu. 


Que  nunca  vista  graça  e  novo  brio 
Lhe  faz  pairar,  correr,  zunir  a  prumo 
O  tempestuoso  corpo  fujidío! 


72  A  Tempestade 

É  ela  a  Tempestade.  . .  !  Ergue-se  um  fumo 

De  cúmulos,  o  pó  que  se  alevanta 

Á  roda,  á  frente,  a  indicar-lhe  o  rumo  .  . . 


E  ela  a  Tempestade . . .  !  Baila  e  canta! 
E  todo  o  Mundo,  á  sua  vista  e  voz, 
Acorda  de  repente  e  se  levanta ; 


E  em  febre,  amor,  delírio  ou  medo  atroz, 
Formando  a  mais  demente  multidão. 
Tudo  vem  vê-la  em  seu  girar  veloz. 


Das  espirais  do  aéreo  turbilhão 
Já  se  entrevê  a  rápida  figura. 
Feita  de  vento,  fogo  e  exaltação. 


Matéria  que  o  delírio  transfigura 
Seu  corpo  agora  é  todo  espiritual, 
Plásmica  labareda.  Essência  pura. 


A  Morte  da  Águia  73 


Tam  alta  se  nos  mostra  que  afinal, 
Posto  que  o  vulto  enorme  esteja  perto, 
E  quási  a  arrebatar-nos  na  espiral. 


Nosso  aturdido  olhar  não  sabe  ao  certo. 
Se  alguma  parte,  membro  ou  forma  etérea 
Ficará  côas  estrelas  encoberto. 


Figura  anímica,  espetral,  aérea, 
Que  os  olhos  d'alma  só  podem  fitar, 
E  nunca  os  olhos  baços  da  Matéria ; 


Éter  divino,  que  penetra  o  ar, 
Hálito,  fluido,  emanação  divina, 
Assim  domina  a  Terra,  o  Céu  e  o  Mar; 


Carne  de  fogo,  e  fogo  de  neblina, 

Olhos  só  de  relâmpago  e  clarão 

E  olhar  que  mais  comove,  que  ilumina. . .; 


74  A  Tempestade 


Pé,  que  de  mal  pisar  é  furacão, 
Braço,  como  o  de  Júpiter  tonante, 
ígneo  feixe  de  raios  traz  na  mão; 


Voz,  de  que  ouvimos  só  o  eco  distante, 
E  apezar  disso  todo  o  Mundo  abala 
Num  trovejar  contínuo  e  retumbante  ; 


E  olhai  a  flor  que  o  seu  cabelo  engala 
—  Rosa  dos  Ventos,  rosa  de  delírio, 
Que  um  perfume  de  espanto  e  Dôr  exala. 


Rosa  de  assolação  e  de  Martírio 
Cujas  pétalas  sam  de  tal  altura. 
Que  abraçam  e  penetram  todo  o  Empíreo 


Oh!  que  sublime  e  trájica  figura. 
Que  faz  horror,  sendo  a  divina  Graça, 
E  espalha  a  treva,  quando  mais  fulgura ! 


A  Morte  da  Águia  75 


Ai !  que  horrível  deserto  onde  ela  passa, 

Onde  só  paira  agora  o  fumo  denso 

Da  Morte,  da  Miséria  e  da  Desgraça  .  .  . 


É  que  onde  toca  o  seu  bailado  imenso, 
Tudo  ela  arranca  e  de  seguida  arrasta, 
Em  seu  aéreo  turbilhão  suspenso  . .  . ; 


Nem  mil  cidades  que  o  tufão  devasta. 
Nem  Mar  e  Terra,  súbito  varrida  .  .  . 
Incêndios,  Morte,  horror  .  . .  nada  lhe  basta; 


Acossa,  estuga  a  lívida  corrida. 
Té  que  a  rocha  tenaz  se  faz  em  pó, 
E  o  pó  corcel  de  fogo  a  toda  a  brida. 


E  a  cada  volta  da  terrível  mó, 
A  cada  rego  do  medonho  arado, 
A  cada  novo  espanto  e  novo  dó; 


76  A  Tempestade 


A  cada  novo  círculo  enroscado, 
Que  os  olhos  quasi  arranca  de  fita-lo 
E  empolga  o  pensamento  arrebatado; 


A  cada  novo  embate  e  novo  abalo 

Daquela  formidável  catapulta, 

Que  o  mesmo  sangue  gela  de  escutal-o, 


Mais  o  delírio  do  bailado  avulta, 
Mais  a  espiral  se  alarga  e  rodopia 
E  mais  o  alegre  deus  bailando  exulta. 


E,  no  auje  da  frenética  alegria. 
Ébrio  de  Graça  e  de  sublime  Encanto, 
Em  si  mesmo  se  afunda  e  se  extasia, 
Até  que  entoa  este  divino  canto: 


A  Morte  da  Águia  77 


«Cósmico  e  primitivo  Turbilhão, 

Sou  quem  fecunda  o  Caos,  dando  orijem 

A  toda  a  Creação.» 


«Mundos,  formas  e  vidas  se  diríjem 
A  meu  seio,  palpando  a  escuridade, 
Cegos  pela  vertijem.» 


«E  Nebulosa,  Génio  ou  Tempestade, 
Minha  espiral  fecundadora  ondeia 
E  enrosca  a  Imensidade;» 


«Vôa,  delira,  zune,  arde  e  volteia 

E  átomos,  mundos,  almas,  leis  supremas 

Meu  atrito  incendeia.» 


«Para  depois  nas  contorsões  extremas 
Lançar  ao  seio  livre  do  Universo 
Os  Astros  e  os  Poemas.» 


78  A  Tempestade 


«O  Universo  é  um  grande  Mar  disperso, 
Cheio  de  redemoinhos  menos  fundos 
Em  meu  vórtice  imerso ; » 


«Abismos,  Céus  e  pélagos  profundos, 
Onde  o  meu  torvelinho  vai  gerando 
O  equilíbrio  dos  Mundos.» 


«Tudo  quanto  ao  redor  vou  devastando. 
Mais  em  meu  seio  lúcido  concentro 
E  vou  purificando ;  » 


«Exalto,  elevo,  arrasto  para  dentro 
Até  que  a  Alma  universal  consiga, 
Pois  trago  Deus  no  centro.» 


«Cósmica  força,  heriditária,  antiga. 
Eu  sou  aquele  forte  e  eterno  laço. 
Que  a  Deus  o  Mundo  liga  !» 


A  Morte  da  Águia  79 


«Vinde  a  mim,  vinde  a  mim  por  todo  o  Espaço 
E  atirai-vos  de  todo  o  coração 
Ao  meu  fecundo  abraço  !» 


«A  mim,  ao  Fogo,  á  Vida,  ao  Turbilhão ! 
Só  morre  quem  tem  medo  á  própria  Vida; 
Nunca  o  que  expira  a  arder  de  exaltação 
E  esperança  desmedida.» 


CANTO  Vil 


A  MORTE  DA  ÁGUIA 


A  Morte  da  Águia 


Mal  a  Águia  divina  ouviu  o  canto, 
Que  unia  a  Morte  á  Vida  e  que  do  Empíreo 
Nos  infinitos  vales  reboava, 
Ergueram-se-lhe  as  asas  por  encanto, 
Porque  a  espiral  de  fogo  e  de  delírio 
Para  o  seio  da  Luz  a  arrebatava. 

Sentiu  correr-lhe  o  sangue  de  roldão. 
Como  se  cada  artéria  fosse  o  leito 
Dum  rio  caudaloso ; 
E  o  largo,  intumecido  coração 
Batia-lhe  de  encontro  ao  forte  peito, 
Como  na  costa  dura  o  Mar  iroso. 


84  A  Morte  da  Águia 


Bateu  as  asas  como  um  largo  açoite 
A  fustigar  ainda  a  Tempestade 
Para  que  o  Turbilhão  fosse  mais  forte  ; 
E  ao  afundar-se  nessa  imensa  Noite 
Sentiu,  último  dom  da  divindade, 
A  alegria  da  Morte. 

Alegria  da  Morte  !  A  derradeira 
Dos  que  numa  agonia  dolorida 
Fitam  os  olhos  num  país  sidério, 
A  última  alegria  e  a  primeira 
Dos  que  ao  despedaçar  a  própria  Vida 
Despedaçam  as  portas  do  Mistério. 

Alegria  da  Morte !  a  mais  ardente 
De  todos  quantos  buscam  a  Verdade, 
De  todos  os  que  morrem  por  amar : 
Dos  que  olham  o  Destino  tam  de  frente, 
Que  pondo  a  vida  toda  na  vontade, 
Obrigam-no  a  parar ! 

Alegria  do  Sol  em  pleno  ocaso, 
Que  ao  cair  para  o  Mar, 
Ao  esconder-se  na  serra, 


A  Morte  da  Águia  85 

Sabe  que  dentro  de  bem  curto  prazo 

De  novo  ha-de  raiar 

E  aquecer  toda  a  Terra  ! 

Outro  Mazeppa  no  corcel  em  fuga, 
Buscando  a  glória  na  miséria  extrema 
Numa  carreira  alada  e  desabrida, 
Que  a  noite,  as  feras  e  o  pavor  estuga. 
Pois  não  ha  sombra  que  o  corcel  não  tema, 
Nem  faça  correr  mais  a  toda  a  brida, 

Assim  a  Águia  vôa  arrebatada, 
Assim  devora  abismos  de  repente 
E  como  sombra  lívida  perpassa. 
Até  que  no  mais  alto  da  abalada 
Um  raio  fulje,  abrindo  um  sulco  ardente 
E  em  pleno  Turbilhão  a  despedaça. 

O  coração  da  Águia  foi  queimado, 

Fez-se  um  clarão  da  mais  divina  esperança, 

Que  espalhando-se  em  toda  a  imensidade 

Foi  abraçar  o  Céu  de  lado  a  lado 

Num  arco-iris,  o  arco  da  Aliança, 

Que  alumia  depois  da  Tempestade. 


A  Morte  da  Águi.- 


Os  Lázaros  do  sonho  irrealisado, 
Os  que  morrem  á  míngoa  de  ventura 
E  nunca  ouviram  cantos  de  vitória, 
Acordam  vendo  o  Céu  illuminado, 
Sentem  abrir-se  a  antiga  sepultura 
E  surjem  de  repente  em  plena  glória. 

Aleluia!  Aleluia!  grita  o  Mundo 
E  logo  a  Terra  atira  das  entranhas 
Tesoiros  mil  sepultos ; 
Emquanto  do  profundo, 
Do  recôndito  seio  das  montanhas 
Correm  á  luz  os  mananciais  ocultos. 

Das  esquecidas  mas  leais  sementes 
No  regaço  amantíssimo  dos  montes 
Uma  Floresta  triunfal  se  eleva; 


A  Morte  da  Águia  87 


Ha  flôr's  mais  rescendentes, 

Nascem  mais  vivas  e  abundantes  fontes 

E  os  astros  incendeiam  mais  a  Treva ! 


S.  João  do  Campo,  Setembro  de  1908  e  Se- 
tembro e  Outubro  de  1909. 


ndice 


Pag. 

O  despertar  de  um  deus 9 

Hino  á  Montanha 15 

A  Árvore  trájica 27 

A  Vida  heróica 41 

O  Canto  das  Águias 49 

A  Tempestade 59 

A  Morte  da  Águia 81 


Erratas 


Pag.  12,  onde  se  lê 

Píncaros,  vales,  azulados,  montes 
deve  lêr-se 

Píncaros,  vales,  azulados  montes  . 


Pag.  76,  onde  se  lê 

Em  seu  aéreo  turbilhão  suspenso 
deve  lêr-se 

Em  seu  aéreo  turbilhão,  suspenso 


Acabado  de  imprimir 

AOS  17  DE  Dezembro  de  1909 

NA  Imprensa 

LiBANio  DA  Silva, 

RUA  DAS  Gáveas,  29  e  31 

Lisboa